Mestre Luiz Renato via Guest Post
O período de confinamento decorrente da pandemia do Covid-19 tem causado muitos impactos para todos nós. Nossa luta maior e mais importante é pela preservação de vidas. E temos visto um empenho e uma mobilização impressionantes nessa direção, apesar de algumas falas obscurantistas e da maldosa disseminação de informações falsas.
Em escala global, as pessoas estão aprendendo a se relacionar de outras formas. As redes sociais e outros recursos da Internet ganham mais importância na preservação das atividades rotineiras, tanto no trabalho quanto nas outras esferas das nossas vidas.
Na capoeira, isso não é diferente. O mundo da nossa arte-luta, que já utilizava amplamente as redes sociais, entra agora em um ritmo impressionante. São aulas, cursos, palestras, lives e atividades coletivas virtuais para todos os gostos e estilos. Vejo como muito positivo todo esse processo de utilização intensiva da tecnologia e dos recursos da rede mundial de computadores.
Uma hora tudo isso vai passar e tudo voltará ao normal. Nesse momento, nosso foco é proteger os mais frágeis, ficando em casa, sempre que possível, e seguindo as recomendações das autoridades sanitárias.
Não obstante tudo isso, há um exercício interessante a fazer: refletir sobre quais serão os legados, para o universo da nossa arte, dessa época tão complexa. O que vai mudar em nossas vidas como capoeiristas, professores e mestres? O que aprenderemos com a crise, além da ênfase nos cuidados com a higiene pessoal e dos ambientes de treinamento?
Mais do que nunca, estamos exercitando o aprendizado horizontal e paralelo aos esquemas tradicionais das chamadas linhagens. Alunos e alunas não aprendem mais exclusivamente com seus mestres. As informações fluem livremente na Internet, basta navegar pelo Facebook e pelo Instagram. Centenas, milhares de aulas, entrevistas; mestres e mestras internacionalmente conhecidos compartilhando generosamente seus conhecimentos. Mas há, também, muitos jovens docentes, mestres e mestras demonstrando sua vontade de aprender e de compartilhar o que já sabem. Para mim (e espero que para todos da minha geração, que estão entre os 50 e 60 anos de idade, ou mais velhos), é uma alegria muito grande ver informação de qualidade sobre a capoeira fluir de forma tão intensa.
Lembro que, em alguns grupos de Whatsapp, semanas antes do início da crise, debatíamos o ensino da capoeira pela Internet, com as opiniões mais diversas. As circunstâncias, entretanto, mostraram que as aulas virtuais podem ser não apenas um recurso adicional, como podem se tornar o principal meio de ensino em determinadas circunstâncias.
No campo da capoeira, qual será o legado de tudo isso que estamos vivendo? Ficam muitas indagações. Essa crise vai nos ensinar a valorizar as informações sobre capoeira a partir de seu conteúdo, analisando com senso crítico e serenidade? Haverá um questionamento do papel de mestres e mestras nos ambientes da capoeira, levando-nos a refletir sobre as práticas pedagógicas que adotamos e a necessidade de constante aperfeiçoamento e atualização? Saberemos olhar com mais atenção para jovens professores, professoras, mestras e mestres ainda menos conhecidos, que lutam por espaço em um ambiente de intensas disputas, onde nem sempre têm direito a voz? Entenderemos, definitivamente, que questões de igualdade de gênero são pautas necessárias, entre várias outras, para que a capoeira avance como uma arte inclusiva e democrática?
Por outro lado, essa ressignificação pela qual está passando a capoeira pode causar outros impactos, que precisarão ser avaliados de forma pormenorizada no momento oportuno. Descobertas as possibilidades de aulas a distância, em geral gratuitas, podendo variar de mestre e professor com um passar de dedo na tela do celular, quais serão os impactos na vida daqueles que dependem das aulas de capoeira para ganhar a vida? Nessa dinâmica, saberemos resguardar o lugar e a relevância da ancestralidade e da tradição para a capoeiragem?
É fundamental pensar nas dimensões profissional e humana relacionadas aos mestres e às mestras do nosso ofício. E a questão vai muito além de tudo isso. Trata-se de avaliar com muito cuidado o resultado da mudança em toda uma cadeia produtiva em que se insere a transmissão intergeracional de saberes ancestrais relacionados à capoeiragem.
Como se já não bastassem todas as dificuldades inerentes ao trato com uma manifestação cultural tão rica e dinâmica como a capoeira, ainda surgem as complexidades próprias dessa crise sanitária, que também é econômica, e que pode ser a maior do nosso tempo.
Surgem, então, novos e imensos desafios para a Salvaguarda da Capoeira como Patrimônio Imaterial. Nossa expectativa é de que se fortaleçam os diálogos e trocas de saberes, e que o empenho dos órgãos do Estado se some aos esforços já realizados pelos capoeiristas pela preservação das nossas formas de expressão, tradições e memórias e pela valorização dos nossos patrimônios vivos.
Brasília, 2 de abril de 2020.
@luizrenato1