A Capoeira e as Medidas de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial

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Luiz Renato Vieira via Guest Post

Doutor em Sociologia e Mestre de Capoeira do Grupo Beribazu

Quando pensamos em medidas de salvaguarda relacionadas à capoeira, não estamos pensando no risco de extinção dessa manifestação cultural, que se encontra efetivamente difundida e integrada a diversas outras instâncias culturais na sociedade brasileira. Estamos, isto sim, diante do desafio de preservar a ancestralidade e, sobretudo, a diversidade cultural que caracteriza suas tradições.

O patrimônio cultural imaterial emerge, portanto, nesse contexto, como uma construção social e histórica e deriva das referências culturais fundamentais de um grupo. Seus elementos assim permanecem enquanto forem reconhecidos dessa forma pelos integrantes do grupo em questão.

É importante observar que, ao selecionar temas, lugares, práticas, saberes e fazeres para registro como patrimônio cultural imaterial, a sociedade, por meio de suas instituições governamentais, constrói e fortalece sua memória e sua identidade. Nesse sentido, estamos de acordo com Marisa Veloso, que, retomando a abordagem clássica de Marcel Mauss, observar que se pode interpretar o patrimônio cultural como fato social total, “pois é uma arena em que se descortinam diversas dimensões, como a simbólica, a política e a econômica.”.

A noção de patrimônio cultural imaterial não se confunde com os conceitos de cultura popular e de folclore, uma vez que incorpora a percepção da dinâmica cultural e de uma espécie de identidade em movimento. Por isso, as políticas de salvaguarda relacionadas ao patrimônio cultural imaterial não são ações de preservação no sentido tradicional, mas um conjunto de iniciativas que deve compreender os diversos aspectos de formação da identidade do grupo social considerado. Dessa forma, ações de salvaguarda são, necessariamente, multifacetadas e envolvem vários setores da atuação governamental.

O conceito de salvaguarda é estabelecido na mencionada Convenção da UNESCO como “as medidas que visam garantir a viabilidade do patrimônio cultural imaterial, tais como a identificação, a documentação, a investigação, a preservação, a proteção, a promoção, a valorização, a transmissão – essencialmente por meio da educação formal e não-formal – e revitalização deste patrimônio em seus diversos aspectos” (art. 2.3).

No que concerne à relevância social das ações de registro e salvaguarda do patrimônio imaterial, e fundamental perceber que tais iniciativas estão entre aquelas utilizadas por uma sociedade na construção e no fortalecimento de sua memória.

Assim como outros mecanismos de registro de experiências, saberes e fazeres de um grupo social (inclusão de temas em conteúdos didáticos, organização de museus, instituição de datas comemorativas, entre muitos outros), a seleção de bens materiais e imateriais a serem tombados ou registrados como patrimônio corresponde às escolhas de uma sociedade acerca do que é relevante lembrar e acentuar em sua experiência.

Em Memória, Esquecimento, Silêncio, Michael Pollak  chama a atenção para o papel da memória no fortalecimento da identidade e do sentimento de pertencimento. Nesse sentido, esse processo de construção de identidade – logo, de ênfase na diferenciação em relação a outros grupos – por meio da memória tem, como contrapartida, o silêncio sobre aquilo que não se pretende registrar ou destacar na memória oficial. Dessa forma, a memória social, sobretudo quando falamos de sua versão reconhecida como “oficial” pelas instituições formais do Estado, consiste em recorte e, necessariamente, em exclusão.

Como manifestação de resistência, e transmitida sobretudo na forma de história oral, emergem o que Pollak designa “memórias subterrâneas”. Esse debate tem especial importância quando tratamos do tema do patrimônio cultural imaterial que pretende, justamente, fazer emergir temas, memórias, saberes e fazeres de origem popular, em geral excluídos dos mecanismos de registro e divulgação da cultura nacional.

O caso da capoeira, arte-luta proibida pelo primeiro Código Penal da República (1890), que após longa trajetória de reconhecimento pelas instituições formais e de difusão pelo exterior foi registrada como patrimônio cultural imaterial pelo IPHAN é representativo da relação entre memória e identidade apontada por Pollak. Décadas se passaram até que os órgãos de cultura pudessem ver, nessa manifestação cultural, um elemento agregador de saberes ancestrais e uma fonte riquíssima da memória da resistência cultural do povo negro no Brasil.

Trata-se, portanto, de um fenômeno relacionado ao exercício do poder no campo do simbólico e das representações. O embate simbólico é, em última instância, a tentativa constante de cada grupo de tornar gerais seus princípios de classificação que, naturalmente, colocam seus elaboradores em posição privilegiada em relação aos demais.

Por tais razões, entendemos que é essencial desenvolver projetos como a presente empreitada: a única forma de enfrentar esse silêncio e esse esquecimento é dar voz aos atores das manifestações populares; fazer emergir suas preocupações, suas visões de mundo e suas demandas.

São muitos, então, os desafios a serem enfrentados. E será necessário enfrentar os obstáculos de sempre, tanto no que se refere às formas de debate e articulação com a sociedade quanto no que concerne à atuação integrada dos órgãos governamentais envolvidos. Como se sabe, entre os principais entraves existentes para as políticas públicas no Brasil encontra-se a dificuldade de construção de iniciativas transversais, intersetoriais e integradas. Esse é mais um obstáculo a superar na formulação de políticas para a capoeira.

Apenas muito recentemente os setores do Estado responsáveis pela gestão de políticas culturais têm demonstrado real permeabilidade às demandas oriundas da sociedade. A capoeira, nesse contexto, ainda está, na maioria dos casos, presa à lógica da dependência das iniciativas do Poder Público.

Ainda são incipientes as ações organizadas de capoeiristas com o propósito de fortalecer a autonomia e o protagonismo como ator coletivo.

Construir consensos para dar efetividade a essas iniciativas é muito difícil. Entretanto, é o único caminho ético, democrático e sustentável.

Foto: Macello Casal Jr/Agência Brasil

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