Malungos,
Durante anos de minha trajetória na capoeira, grande parte dela foi dedicada ao segmento esportivo da Capoeira. Seja na criação de entidades; na presidência de federação e ligas ou mesmo realizando e participando de campeonatos e festivais de capoeira a nível nacional, estadual, regional e municipal.
Com a regulamentação da profissão de educador físico, logo no primeiro ano este sistema começou a perseguir capoeiristas em nosso estado (RJ), o que nos fez posicionar-se contra o Sistema Confef/Cref’s, inclusive por vias judiciais.
A batalha não foi fácil, mesmo porque, naquele momento muitos capoeiristas, achando que estariam bem ficando sob a “tutela” daquele conselho, aderiram ao sistema fazendo cursos de provisionados e adquirindo uma carteira que supostamente lhe daria o direito de ministrar aulas de capoeira em todo o território nacional sem ser importunado por ninguém.
Mas claro que isso não foi de graça, teve um preço. Além do pagamento de uma anuidade, a atitude de alguns capoeiristas deu subsídios ao sistema esportivo para poder tentar, de diversas formas, ter a capoeira sob o seu “guarda-chuva” o que acabou causando constrangimento em muita gente que naquele momento trabalhava com a capoeira, mas que se absteve de se filiar aos referidos conselhos em seus locais de origem.
Depois de muita batalha judicial, tramitação de projetos de lei no Congresso Nacional, levantou-se, por parte de alguns segmentos da capoeira, a bandeira pela profissionalização, onde participei ativamente defendendo este pleito. Mas, ao perceber que o que se queria com a profissionalização era colocar um “cabresto” na capoeira e por trás deste cabresto controlar os recursos públicos e/ou privados via instituições de fiscalização do exercício profissional, impedindo, assim, que a verba destinada à capoeira chegasse diretamente nas mãos dos detentores e detentoras, me afastei e junto com alguns outros companheiros e companheiras criamos o movimento denominado Rede Nacional de Ação pela Capoeira.
Este movimento teve muito êxito nas pautas que defendia. Mas também nos trouxe muito desgaste físico e emocional, principalmente para os e as que estavam na trincheira, na resistência. Primeiro porque as pessoas que aderiram o protagonismo de luta em defesa de uma capoeira livre angariaram muitos dissabores, muitas inimizades, tendo em vista que a atuação constante do movimento levantado pela Rede afetava sobremaneira muitos interesses não republicanos.
Dentre as ações implementadas por nós foi a derrubada do reconhecimento da capoeira como desporto orquestrada pelo Conselho Nacional do Esporte, com o apoio do Sistema Confef/Cref’s, tendo em vista que este reconhecimento nos colocava a mercê da fiscalização daquele sistema. Muitos capoeiristas não entenderam a nossa posição e se colocaram contra a nossa luta, o que, diga-se de passagem, numa democracia é salutar.
Outra batalha que articulamos em nível de Brasil foi eleger para o Conselho Nacional de Política Cultural o maior número possível de representantes da capoeira e neste quesito também conseguimos uma vitória substancial elegendo conselheiros e conselheiros da capoeira de todas as regiões do país para compor o CNPC.
Com essa articulação conseguimos aprovar a cadeira da capoeira no Conselho Nacional de Política Cultural e indicar um conselheiro e uma conselheira como titular e suplente para ocupar o espaço de poder naquele momento criado.
Além desta ações realizamos em parceria com a Fundação Cultural Palmares um encontro nacional que definiria quais as demandas seriam encaminhadas ao poder público para implementação imediata de apoio aos mestres e mestras de Capoeira enquanto detentores e detentoras do saber e, ainda, ações de preservação das rodas de capoeira enquanto patrimônio cultural do Brasil.
Mas, com o golpe de Estado ocorrido no Brasil (e que agora fica cada vez mais claro os seus propósitos, com a divulgação de gravações pelo site The Intercept Brasil), todas as articulações feitas por nós junto ao governo federal foram desarticuladas, com exceção apenas das ações realizadas junto ao IPHAN. Que, mesmo com o seu orçamento reduzido tem, pontualmente, se empenhado, quando provocado pelos detentores e detentoras, a desenvolver ações de salvaguarda da capoeira em seus locais de atuação.
Com a eleição majoritária ocorrida em 2018 e com a entrada no poder de um governo neofascista, a capoeira logo no inicio deste mandato antidemocrático teve perdas, como, por exemplo, o Decreto nº 9.891/2019, que criou uma nova configuração no Conselho Nacional de Política Cultural e acabou com a cadeira da capoeira e de outros segmentos das culturas negras e das culturas populares e tradicionais naquela instância de deliberação sobre políticas públicas de cultura para o país.
Ainda assim, mantendo-se na resistência, diversos grupos ligados à salvaguarda da capoeira tem intensificado as suas ações junto ao IPHAN, que, diga-se de passagem, tem a obrigação de pensar políticas públicas voltadas para a preservação do ofício dos mestres e mestras e da roda de capoeira enquanto patrimônio cultural.
“A VOLTA QUE O MUNDO DEU A VOLTA QUE O MUNDO DÁ”
Paralelo a este movimento de ações da salvaguarda, volta a ter inserção no seio de alguns setores da capoeira, a bandeira da profissionalização, que, digamos, também é legítima, mas que nos faz refletir se este seria o momento oportuno para se pensar na profissionalização da capoeira ou na regulamentação do trabalho relacionado as nossas práticas.
Temos hoje no país mais de 14 milhões de pessoas desempregadas. Desde 2016 tem sido articulado e aprovado no legislativo e no executivo leis que retiram direitos históricos dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiras. Neste momento encontra-se no Senado proposta de mudanças na previdência social que, como sabemos, irá afetar a maior parte da população brasileira, massacrando ainda mais trabalhadores e trabalhadoras e dificultando o acesso destes a uma aposentadoria digna.
Há, também, no Congresso Nacional, uma articulação para se acabar com os Conselhos Profissionais justamente por entenderem ser esse sistema apenas cartorário, não trazendo, efetivamente benefícios que reflitam em melhorias para o profissional e muito menos para a sociedade.
Sem contar que o projeto de leis que tramitam no Congresso Nacional e que se referem à nossa capoeira tem sofrido intervenções por parte do sistema Confef/Cref’s, que se articulam nos gabinetes com vistas a controlar o exercício da prática da capoeira em todo o território nacional.
Caso queira comprovar o que estou dizendo, basta verificar qual foi à instituição que solicitou a realização de Audiência Pública para discutir proposta pedagógica de formação de professores para o ensino da capoeira nas escolas, que ocorrerá em Brasília em data ainda não definida. O pedido de Audiência Pública, já aprovado pelo Congresso Nacional, foi solicitado pelo Conselho Federal de Educação Física – CONFEF, conforme informações obtidas por mim no gabinete do deputado federal Professor Israel Batista (PV/DF). No requerimento o deputado solicita que sejam convidadas as seguintes autoridades: Jânio Carlos Endo Macedo, Secretário de Educação Básica do Ministério da Educação; Décio dos Santos Brasil, Secretário Especial do Esporte; Jorge Steinhilber, presidente do Conselho Federal de Educação Física; Patrick Novaes Aguiar, presidente do Conselho Regional de Educação Física do Distrito Federal – CREF 7 e um representante da Secretaria de Educação do Distrito Federal. Pasmem, nenhum representante da capoeira foi convidado à participar desta audiência pública. Será que as pessoas e entidades ali representadas tem legitimidade para opinar sobre a formação dos capoeiristas poderem atuar nas escolas? Esta é uma pergunta que não quer calar.
Ora, se o Projeto de Lei 1966/2015 e seu substitutivo, que obriga os profissionais de capoeira se filiar as instituições desportivas para terem o direito de realizarem convênios com escolas públicas e particulares sejam aprovados como está, nos deixa a mercê deste sistema, que, apesar dos grandes embates que tivemos com eles na esfera judicial, ainda tentam, mesmo ao arrepio da lei, nos tolher enquanto detentores de um saber ancestral hoje reconhecido como patrimônio cultural brasileiro e, portanto protegido pela nossa Carta Magna.
Aí fica a pergunta: Será que a profissionalização da capoeira, como defendem alguns de nossos pares trarão benefícios efetivos para a nossa atividade? Entendemos que ao se criar uma profissão deve-se criar um órgão de controle. E vocês acreditam que o governo brasileiro, que tem mostrado interesse em acabar com os conselhos profissionais vai querer criar mais um, ou, caso se mantenham os conselhos que aí estão vocês acham que a capoeira, enquadrada como uma atividade esportiva será “jogada” aonde?
Eu respondo meus nobres amigos. Será colocada sob a fiscalização dos conselhos estaduais de educação física. E faço mais uma pergunta: quantos de nós teremos condições de pagar anualmente mais ou menos 500 reais ao Sistema Confef/Cref’s? E se não for possível pagar? Estaremos exercendo ilegalmente a nossa profissão? E com isso, em vez da profissionalização trazer benefícios para o profissional da capoeira irá fomentar ainda mais a exclusão deste profissional no mercado, que tem hoje em todo território nacional o exercício do seu ofício livre, assim como define a Constituição Federal e o Estatuto da Igualdade Racial.
É importante ressaltar, ainda, que o debate sobre a profissionalização que novamente vem sendo travado, não poderá desconsiderar que o ofício de mestre de capoeira é reconhecido pelo Estado brasileiro, e o que fez com que este ofício fosse reconhecido foi o caráter multidimensional da capoeira, já que esta, ao mesmo tempo em que é luta, é dança, é filosofia de vida, sendo também esporte. Enfim, “é tudo que a boca come”.
Portanto camaradas, discutir a profissionalização da capoeira é legítimo, mas chamo a atenção dos meus pares pare que prestam bastante atenção nos termos em que esta profissionalização esta sendo construída, pois você poderá sair do exercício livre do seu ofício de mestre de capoeira em todo o país, para o exercício ilegal da profissão.
Fica a dica e vamos ao debate. Deixe seus comentários aqui neste espaço ou através de nossas redes sociais.
Porque “quem não sabe andar pisa no massapê e escorrega”.
Iê vamos s’imbora camará!
Com meus respeitos
Mestre Paulão Kikongo
Tem meu apoio Mestre. Estamos juntos.
Mestre Pernambuco, juntos somos mais fortes. Vamos que vamos.
Continuamos na luta incansavelmente para
Ver a capoeira livre como sempre foi.
capitaes do mato aqui não
Mestre Tonhão, incansável guerreiro. Vamos que vamos lutar a cada dia pela nossa liberdade de atuar.
Muito bom, Mestre Paulão, Excelente explanação que nos possibilita ver com mais clareza sobre o tema! A profissionalização é um tema que merece ser discutida com mais cautela entre a comunidade da capoeira, para que não tenhamos que correr o risco de ficarmos sob o controle de órgãos fiscalizadores como Confef/Cref.
Grande amigo Mestre Caimbé. Esperamos que esse texto suscite o debate.
Parabéns Mestre Paulão! Excelente explanação, tirando a dúvida de muitos que não entendem a legislação…
Obrigado Mestra Lea. Vamos à luta.
estamos juntos mestre! obrigado pela explanação! vamos a luta!
Eu penso que ,para uma pessoa se formar em uma faculdade leva um tempo aí de uns ,5 anos ou menos ,nós proficionais da capoeira ,para chegar a professor leva de 15 anos para mais um pouco ,para mestre mais uma longa jornada,só que eu como um professor que fui formado com 27 anos de capoeira ,isso foi por minha escolha mesma ,vejo que tem uns grupos por aí que acabam e estão acabando com a essência pois tem capoeiras que com 5,6,anos estão se formando sem ter tempo para chegar a formação de professor ,eu luto por tentar inibir isso ,claro cada grupo tem sua eraquirquia mas isso acaba com a essência de aprendizagem dos capoeiras ,assim penso…