Por
Maria Paula Fernandes Adinolfi
Bacharel em História e Mestre em Antropologia Social
Via Guest Post
A reportagem veiculada pela BBC Brasil no dia 14 de outubro de 2017, intitulada “Capoeira gospel cresce e gera tensão entre evangélicos e movimento negro”, causou surpresa e mal-estar entre setores majoritários dos capoeiristas em todo o Brasil.
A reportagem tem cunho parcial, enviesado e não apresenta as questões principais que hoje permeiam o debate sobre a capoeira gospel no país.
Ela omite a intenção política que está na base do projeto orquestrado pela Igreja Universal do Reino de Deus e Partido Republicano Brasileiro (PRB) ao tentar se apropriar da capoeira como instrumento de ampliação de seu poder político.
Apesar de ter ouvido membros da Rede Nacional de Ação pela Capoeira, hoje uma de suas mais representativas articulações sociais, suas falas foram desconsideradas, ferindo um dos princípios básicos do jornalismo, que é apresentar os diferentes lados de um debate.
Também a fala da antropóloga do IPHAN foi recortada, omitindo os pontos principais de sua entrevista e publicando uma frase sem contexto, que dá a entender que o posicionamento da instituição seria neutro frente às descaracterizações do patrimônio cultural brasileiro e mundial que estão sendo operadas pela “capoeira gospel”.
O fato é que a “capoeira gospel” não é um problema de fundo religioso, mas sim parte de uma disputa de poder orquestrada pela IURD e PRB, que criaram Frentes Parlamentares da Capoeira na Câmara dos Deputados e em diversos estados e municípios, para aprovar projetos de seu interesse. Na Câmara seu principal líder é o Deputado Bispo Márcio Marinho, relator de um projeto de Lei que, após uma manobra que ignorou completamente os resultados de uma audiência pública convocada por ele próprio, alterou o texto original da Lei n. 1966/2015, já aprovada pelo Senado.
Desta maneira, ele transformou um projeto que originalmente beneficiava capoeiristas e estudantes, permitindo a parceria entre associações de capoeira e instituições de ensino, para que Mestres de Capoeira pudessem ensinar nas escolas, em um projeto que permite isso apenas para as associações e grupos filiados a Federações de Capoeira.
Ocorre que estas Federações já foram, em muitos estados e municípios, cooptadas pela própria Igreja Universal e pelo PRB, recebendo cargos nos gabinetes de vereadores e deputados e favores políticos.
Estas Federações não prestam contas de suas atividades, tem formas pouco transparentes de operar e não gozam de representatividade e legitimidade entre os capoeiristas.
Desta forma, IURD, PRB e Federações querem garantir que apenas os grupos que compactuarem com sua política de evangelização e poder sobre a capoeira possam atuar nas escolas públicas e privadas. Ou seja, desta forma, todo o ensino de capoeira se tornará ensino de capoeira gospel e mantida sob o cabresto das Federações.
Estas são as informações que deveriam ter sido veiculadas pela BBC, mas que foram deliberadamente omitidas, apesar de terem sido mencionadas em diversas entrevistas realizadas pela repórter Mariana Schreiber, e que não poderiam jamais ter sido suprimidas.
Pergunta-se: qual a intenção da BBC ao ocultar estes fatos? Quais os interesses políticos de uma empresa internacional de comunicação em dar voz aos interesses da escalada conservadora, antidemocrática e fundamentalista que assola o Brasil?
Quando a questionei hoje, após ficar estupefata com a leitura da reportagem, ela apenas respondeu que “houve uma decisão editorial de mudar o foco da reportagem do PL 1966/2015 e a atuação da bancada evangélica para a questão da apropriação cultural”.
A capoeira, desde seu princípio, é uma prática da liberdade. No dizer de Mestre Pastinha, um de seus ícones maiores, ela é “mandinga de escravo em ânsia de libertação”.
A capoeira não admite amarras, ela acolhe a todos, inclusive evangélicos, mas não quer ser tolhida por ninguém.
Ela de fato já passou por muitas “apropriações”, mas seu sentido principal de prática afro-brasileira que tem conexão com a ancestralidade de segmentos negros e populares que lutaram para sobreviver e manter sua memória e identidade sempre se manteve.
A recusa do monopólio da capoeira pela Igreja Universal e pelas Federações não é (ao contrário do que disse a reportagem) apenas do movimento negro, ela é de uma expressiva maioria dos capoeiristas, que diz NÃO a todas as formas de manipulação, opressão e restrição de sua liberdade de viver e ensinar a capoeira conforme transmitido de mestre a discípulo há centenas de anos.